8 de outubro de 2009

Sobre manuais escolares e outros assuntos em torno da educação de infância

Já fui acusado de "radicalismo", por ser completamente contra a utilização de "manuais escolares" na educação de infância.
Compreendo que a força do dinheiro (editores, autores, intermediários, etc.) é grande e absorvente, contudo, gostava de deixar umas pequenas observações sobre este tema: na década de 70, os muitos manuais escolares em uso (que, na maior parte enalteciam as virtudes do Estado Novo) foram abandonados (queimados e destruídos, diria), ao abrigo de uma consciência colectiva que pretendia "libertar" o povo e as jovens gerações do "jugo do fascismo".
Nas décadas de oitenta e noventa, as editoras começaram a "importar" para os manuais escolares referências (directas) a marcas e, de certa forma, a publicitar, comercialmente, produtos e bens.
Na actualidade, o Ministério da Educação constituiu uma equipa para "avaliar pedagogicamente a qualidade dos manuais escolares", o que fez com que as editoras se tivessem de voltar para “novos mercados”...
Posto isto, sobre os manuais escolares, tenho dito!
Mas sobre a sua utilização, primeiro, aos que os confrontam com a utilização dos instrumentos tecnológicos (pondo-os no mesmo saco), devo dizer o seguinte: fazer essa discussão numa perspectiva de confronto (de opções e estratégias pedagógicas) faz-me perguntar se quem usa manuais usa também, assiduamente, o polidesportivo (ou a área de actividade física), se costuma subir às árvores, se costuma passear pelo campo ou cidade à volta do espaço escolar, se costuma ir à loja comprar bens e produtos, se costuma ir ao Centro de Dia e à Junta de Freguesia, se vai muitas vezes à Biblioteca Pública da zona, se costuma passar pelo Centro de Saúde e, se, por fim, costuma visitar pais e encarregados de educação nas suas actividades profissionais...
Estas perguntas surgem-me, fundamentalmente, porque, para mim (e aqui digo-o claramente) depois de “fazer” coisas e pensar sobre elas, não me resta muito tempo para treinar habilidades motoras específicas (fazer bolas e traços, pintar dentro e pintar fora...), ou, se me sobra, prefiro fazê-lo com o rato do computador (porque mais motivador para as crianças), com as histórias da Biblioteca (porque muito mais imaginativo) e com a pintura de painéis e cartazes (e reparem que não disse "desenhos") onde nos podemos - todos - exprimir com muito mais "espaço" (físico e psicológico!).
Creio que me entendem que do que falo são de opções pedagógicas e que, neste "debate" deve ser também entendida a necessidade de “conquistar, “aprender”, "incluir", "diversificar", "apoiar", "reflectir", e, acima de tudo "imaginar" e "criar".
Normalmente, quando lemos textos do Sá ou de outros "pensadores da modernidade", temos uma clara consciência de que eles falam de um "Mundo idílico", onde as crianças têm o direito de brincar, de pensar, de imaginar e de criar. "Por culpa dos pais" (expressão nossa), é um mundo difícil de alcançar, e estamos, continuamente, a criticar as opções das famílias, dos colegas, dos "outros"...
Para terminar esta reflexão, gostaria apenas de deixar uma imagem forte: imaginem o dia-a-dia de uma criança de 4 ou 5 anos que chega ao JI às 8.15h da manhã, começa por pintar uma fichas copiadas (que a animadora, ou assistente operacional lhe dá para "matar o tempo"), e depois, das 9.00h até que os colegas cheguem e completem o grupo, brinca com um puzzles e jogos de encaixe, parando às 10 para um pequeno lanche. Segue-se a “brincadeira livre” (onde até pode ser a pintar umas "fichazitas", “porque gosta”) e, depois da higiene, vai, em fila indiana, de mão dada, até ao refeitório (que fica a 10 metros de distância, em linha recta e sem obstáculos)...
Depois de almoço, porque está a chover, vai até à sala polivalente onde a animadora lhe dá mais um postalinho do Dia da Mãe para pintar e, quando volta à sala de actividades, vai acabar aquele trabalhinho do saquinho com cheirinho para levar à Mãe. Depois, ao fim do dia, volta à sala polivalente onde a animadora lhe preparou aquele filme espectacular do "Rei Leão" que ela já viu 40 vezes mas que continua a "gostar de ver", até que a mãe a vá buscar, para quando chegar a casa, a por à frente da televisão (ou do computador) a ver o episódio novo do Noddy...
Imaginem que esta pequena descrição é meramente especulativa e que não será, nunca, realidade em Portugal.
Imaginem ainda que o Jardim de Infância não é (nem será nunca!) um espaço onde se toma conta de crianças e, por fim,
Imaginem que o trabalho dos educadores de infância é tão socialmente considerado, que os colegas dos outros ciclos lhes pedem, encarecidamente, para os receberem nas salas onde eles podem aprender algo sobre Educação Sexual, Formação Cívica, Abordagem de Projecto ou Formação Pessoal e Social.
Depois de imaginarem todas estas coisa, façam o exercício de perdoar a este desbocado e compreender que ele, por vezes, não consegue exprimir o que lhe vai na alma de forma concisa , pertinente e assertiva.
Por isso, aceitem-lhe o sincero pedido de desculpa que ele vos envia...

3 comentários:

Pai disse...

Concordo plenamente! Penso que não tens nada para desculpar. Tudo o que disseste não é ofensivo. É directo e verdadeiro. Sou enfermeiro e vivo com uma educadora de infância que, felizmente, é o oposto do retrato "especulativo" que fizeste. Ela preocupa-se (e ocupa-se bastante) em planear inúmeras actividades, com diferentes materiais, estimulando a imaginação das crianças, e mesmo quando chega a casa, não para de pensar no que vai levar amanhã para os surpreender. Depois, além de se (pre)ocupar, também me ocupa também, embora eu não me importe muito, pois adoro crianças e sou a favor de tudo o que seja feito para o seu bem. Já quem tenta ou faz algo contra elas, tem-me à perna! Não admito mesmo, principalmente se eu estiver presente.

Continua a escrever e a chamar a atenção para o que achas que vai mal. Não há desculpas a pedir por dizer o que nos vai na alma.

voo do tapete disse...

"Fazer coisas"... ou vivê-las?

Na verdade penso que cada vez mais vivemos formatando-nos mutuamente para fazer muitas coisas no registo do mecânico (tarefas, obrigações, rotinas, enfim um rol infindável de... coisas) e para viver cada vez menos no registo do fruir o gosto de as fazer. Basta estar atento num qualquer supermercado e ver como a maior parte das pessoas atiram com as suas compras para dentro dos carrinhos e depois novamente as manipulam com indiferença no gesto, aos produtos que escolheram para alimentar a família, para tratar de manter saudável o seu corpo e o dos seus familiares... Estamos desligados, definitivamente estamos cada vez mais desligados da essência das coisas e isso observa-se a cada passo, a cada situação quotidiana.

E, naturalmente, também passámos a achar natural educar assim os nossos infantes, "mantê-los ocupados e se possível, cada vez mais precocemente envolvidos em actividades "escolarizantes", que os "preparem para a escola", num modelo que, pasme-se, ainda corresponde, para muita gente, ao aluno ouvinte e executante fiel das directrizes do professor expositor de conteúdos.

E, neste contexto, subir às árvores serve para quê? Para os rapazes pequenos ainda cairem de algum galho, partirem a cabeça e no dia seguinte não poderem ir para a escola aprender... Mas aprender à séria, com fichas, manuais e tudo! :)

M. Jesus Sousa (Juca) disse...

Henrique,
Não tens nada que pedir desculpa, antes tens que receber os parabéns por tão bem colocares no papel aquilo que muitos de nós, educadores, sentem.

Bjs,Juca