O aluno do mestre ignorante aprende o que o mestre não sabe, já que o mestre fala para ele procurar alguma coisa e recontar tudo o que descobriu no caminho
Jacques Rancière
Interrogo-me, bastantes vezes, sobre a razão pela qual os professores, em geral, têm uma tão grande dificuldade em mudar práticas, especialmente, aquelas que se auto-demonstram como desadequadas, inconvenientes ou inúteis.
Muito se tem escrito (e garanto-vos que muito tenho lido!), e, na maior parte das vezes, a(s) razão(ões) apontadas versam as mudanças a montante ou a jusante do professor.
Ou é pelas famílias que mudaram, ou é pela comunidade que mudou. Ou é porque as tecnologias e técnicas são inovadoras, ou é porque os alunos são outros. Ou os espaços escolares se reconverteram, ou então porque a Escola já não é “a” escola.
Muitas (talvez demasiadas!) são as razões que inúmeros estudos tentam evidenciar, perceber, refletir ou, tão só, assinalar.
São ainda mais, acredito, as razões com que nos justificamos.
Mas poucos (eu quase seria incómodo se dissesse: nenhum!) de nós leu algum estudo, alguma vez, que faça residir na capacidade intelectual, moral, social ou cognitiva do professor a causa e a consequência desta enorme incapacidade de mudança.
Mas é mesmo, no professor, que se encontra tal desiderato. E perdoem-me se possa parecer demasiado cruel e rude, mas não esqueçam que também eu me incluo no lote…
Não é pela sua incapacidade própria, por estupidez, por burrice, por ignorância ou por qualquer um dos outros adjetivos que, constantemente são usados para definir, pelos “outros”, os professores.
Na realidade a culpa de não raciocinar não é nossa.
Deixamos de raciocinar quando assumimos a função (para nós meritória, distintiva e pragmática) de ensinar. Mas não temos consciência plena disso.
Passo a explicar…
A função docente, baseada na perene ideia de que o Professor é a pessoa que ensina (ciência, arte, técnica ou outros conhecimentos), basta-se na justificação de que exercer este ofício/missão revela um forte empenhamento com as causas sociais e, sobretudo, com o papel de “mudar o mundo”. Para o exercício dessa profissão, requer-se qualificações académicas e pedagógicas, formação aturada e competência técnica para que se consiga transmitir/ensinar a matéria de estudo da melhor forma possível ao aluno.
Ora, é nesta imagem de docente/professor (o de transmissor) que reside a resposta, mais do que evidente, sobre as causas de imutabilidade do desempenho docente.
O professor apreendeu (ou foi ensinado) a transmitir conhecimentos.
Transmitir, na ótica da construção da função docente, significa, assim, ser um mero repositor de ideias, factos e processos sem que deles deva duvidar, questionar ou variar.
Nesse sentido, ao longo de muitos anos, o professor limitou-se a aplicar um determinado modelo de ensino/aprendizagem (crendo, claro, que esse processo de transmissão, de tão óbvio e de tão bons resultados numa perspetiva global e holística, jamais deixaria de resultar) e sobre o qual desenvolveu esquemas ou modelos de avaliação de resultados, plasmados, claro, nas dinâmicas de avaliação dos alunos, normalmente suportados por métodos e metodologias que aferem a forma como o conhecimento transmitido é aceite e processado pelos alunos.
Este modelo de transmissão preocupa-se em demasia com métodos e técnicas num verdadeiro “endeusamento” dessas lógicas de fazer, como se a educação pudesse melhorar a partir da metodologia de ensino (sem minimizar a importância das metodologias).
Contudo, bastas vezes nos esquecemos de procurar a base conceptual que sustente e estruture metodologias, duvidando, refletindo, equacionando e raciocinando sobre elas.
Qualquer método ou técnica encontra os seus fundamentos numa psicologia educacional, o que, por sua vez, encontra seus fundamentos numa filosofia da educação. O culto indiscriminado da técnica impede a reflexão sobre o processo filosófico da educação, mas também a análise crítica do nosso desempenho e, obviamente, a capacidade de raciocinar sobre o nosso papel num mundo em mudança.
Desta forma se torna evidente que os professores têm alguma dificuldade em entender que, analisando dialeticamente, não há conhecimento absoluto, pois tudo está em constante transformação.
As sociedades contemporâneas especializaram-se em “encher as cabeças” com toneladas de informações empilhadas, e, ao mesmo tempo, carentes de princípios de seleção, análise e organização que lhes dêem sentido. O modelo de educação reduzido à instrução, centrado na transmissão de conteúdos, fragmentados e descontextualizados, e que entende o conhecimento como o acumular de informações, é cada vez menos compatível com complexidade observada a jusante da Escola.
As informações apenas se convertem em conhecimento se os estudantes forem estimulados a pensá-las, liga-las e contextualizá-las, encontrando pontos de aproximação e distanciamento para articular a diversidade dos dados. Logo, conhecimento é, nesse sentido, a informação tratada, significada por operações de pensamento.
Mas, é exatamente aqui que nós, docentes, revelamos a nossa maior fragilidade: não estamos treinados para, também nós, proceder assim.
E, desde logo, porque, por alguma razão, ignoramos o momento em que vivemos, porque nos sentimos alheios ao conflito que nos cerca. De igual forma, não nos é natural ler, refletir ou discutir.
O conhecimento é ativo e em construção e, a todos nós, cabe-nos o papel não só de transmitir o conhecimento mas, sobretudo, detê-lo, atualizado, informado, confrontado, discutido, refletido,
Porque, sublinhando António Machado Ruís (como Juan de Mairena), “A finalidade de nossa escola é (deveria ser) ensinar a repensar o pensamento, a ‘des-saber’ o sabido e a duvidar de sua própria dúvida; esta é a única maneira de começar a acreditar em alguma coisa”
Podemos acreditar?
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